terça-feira, 28 de setembro de 2010

Família é prato difícil de preparar

Lindo texto extraído do livro "O Arroz de Palma" de Francisco Azevedo (Editora Recod, 2008)



Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema, principalmente no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida - azeitona verde no palito - sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade. Sicrano - quem diria? - solou, endureceu, murchou antes do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente.

E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer companhia. Como saiu no álbum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero e do grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.

Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias - que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar -  tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa.

Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto, é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.

O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe “Família à Oswaldo Aranha”, “Família à Rossini”, Família à “Belle Meunière” ou “Família ao Molho Pardo” - em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é “à Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.

Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada - seriam assim um tipo de “Família Diet”, que você suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.

Há famílias, por exemplo, que levam muito tempo para serem preparadas. Fica aquela receita cheia de recomendações de se fazer assim ou assado - uma chatice! Outras, ao contrário, se fazem de repente, de uma hora para outra, por atração física incontrolável - quase sempre de noite. Você acorda de manhã, feliz da vida, e quando vai ver já está com a família feita. Por isso é bom saber a hora certa de abaixar o fogo. Já vi famílias inteiras abortadas por causa de fogo alto.

Enfim, receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete.

12 comentários:

Anônimo disse...

Oi JD, muito interessante, adorei a forma como ele escreve.E uma metáfora e tanto para se trabalhar.
grande abraço
Glorinha

Unknown disse...

Demais! ;)

Anônimo disse...

Maravilha! Amei! E gostei muito também do tópico comentários sobre os livros. Abraços, Mirian

Jonas - Golden Quadros disse...

Muito 10. Gostei e repassei.
Abraço

conversaseestorias.blogspot.com disse...

Oi João,

por incrível que pareça , hoje, consegui ler o texto inteiro. Sim, porque é uma leitura de pura sensibilidade e delicadeza, não dá pra ler na correria!!!
Lindo o texto, obrigada por compartilhar.
Bj., Virgínia

Anônimo disse...

Prezado João David,
Muito obrigado a você e aos seus seguidores pelas palavras afetuosas com relação ao texto do meu romance "O arroz de Palma". O melhor retorno para quem escreve é justamente esse: o carinho e o apreço de seus leitores. A você, em particular, agradeço a força e o estímulo que tem dado para divulgar o livro (vi, aqui pela internet, comentários seus até pelo twitter!). Que a vida lhe dê em dobro, em bênçãos na família e inspiração no trabalho, toda essa sua generosidade.
Receba um forte abraço do
Francisco Azevedo.

jd disse...

Caro Francisco
É uma honra receber sua visita em meu blog, e aproveito então para cumprimentá-lo pelo seu belo romance, que li com muita satisfação.
Fiz questão de transcrever um trecho aqui no blog porque acredito que você conseguiu traduzir com enorme sensibilidade muito do que nós, terapeutas de família, vivenciamos em nossas conversações no cotidiano da clínica.
Fico feliz em saber que eu e os leitores deste blog estamos contribuindo na divulgação do livro.
Afinal, todos temos em comum o apreço pela boa literatura.
Um grande abraço a você, e seja sempre bem vindo por aqui.

Nelson Guimarães disse...

Nunca vi melhor retrato...

Anônimo disse...

Mais uma vez, obrigado por suas palavras, João. Esteja certo de que, vez ou outra, virei visitá-lo por aqui para ler suas matérias. Grande abraço.
Francisco Azevedo.

Luciana Boeing disse...

Olá João, já conhecia esse texto, é lindo mesmo e diz tudo de uma forma deliciosa. Abraços, estou adorando seu blog!

jd disse...

Concordo com você Luciana, e posso dizer que o livro inteiro é muito "saboroso".
E seja sempre muito bem vinda por aqui!

Lu disse...

Delícia de texto!!!