Publico a seguir entrevista que dei para Giovanna Balogh, repórter de "Cotidiano", da Folha de São Paulo, e que serviu de base para a minha participação na matéria "Crianças Devem Brincar de Lutinhas?", publicada no Blog Maternar.
1 – O que influencia o interesse, principalmente, dos meninos por brincadeiras
de lutinhas? Eles são influenciados por desenhos de super-heróis, por exemplo?
As brincadeiras de luta podem ser compreendidas
como parte natural do desenvolvimento infantil. É possível que estejam
associadas à própria história do desenvolvimento evolutivo da humanidade.
Sabe-se que outros animais também praticam este tipo de brincadeira. Neste
caso, os animais costumam emitir sinais sonoros ou comportamentais que indicam
que se trata de uma brincadeira e não de uma luta. Esta distinção também pode
ser feita na interação pai-filho durante uma brincadeira de lutinha.
É esta distinção (e o exercício de reconhecê-la)
que contribui para que a lutinha seja até mesmo um caminho de mediação social,
em que a criança aprende a lidar com os limites de sua força e seus impulsos.
Tal aprendizado pode lhe trazer ser um grande benefício para a vida adulta.
Da mesma maneira, as histórias de super-heróis
estão presentes na infância. Há uma identificação da criança com o herói, que
faz parte do processo de construção de sua própria identidade, o que chamamos
de “diferenciação”. Ao identificar-se com o que vence o mal, ela vai
construindo seu repertório de valores e crenças.
Além disso, é importante considerar o papel influenciador da mídia (TV, cinema, publicidade, games etc). Este papel vai bem além da simples diversão ou lazer, mas é especialmente um instrumento de construção e modelação de discursos, comportamentos, relacionamentos e visão de mundo.
Então aqui temos dois elementos importantes que nos ajudam a entender um pouco do fascínio que os desenhos de super-heróis exercem sobre as crianças: a identificação psicológica com um personagem heróico e a influência da mídia interessada em vender produtos e modelar comportamentos.
2 - O melhor é evitar esse tipo de desenho?
O melhor é evitar o excesso e a estimulação desse tipo de desenho.
Sugiro aos pais três palavrinhas para lidar com esta situação: PRESENÇA,
FILTRO e ALTERNATIVAS.
Presença: considero importante que os pais possam encontrar maneiras de
assistir o desenho ao lado da criança, de participar ativamente deste processo
de identificação que está ocorrendo na vida dela. Assistir um desenho junto com
a criança cria oportunidades para ajudá-la a desenvolver criticidade quanto ao
que ela vê, na medida em que os pais podem, por exemplo, compartilhar com ela o
que é legal e o que não é legal no desenho.
Filtro: nem todos os desenhos são de todo violentos, e nem todos são
adequados para uma criança assistir. Se os pais acompanham de perto o que elas
estão vendo, fica mais fácil para fazer algum tipo de filtro. Se os pais consideram que um tipo de desenho
ou game ainda não deve estar ao alcance da criança, podem explicar a ela e
filtrar. O filtro pode ajudar a criança
a perceber que há coisas que são possíveis e outras que não. E isto valerá pra
vida toda.
Alternativas: outro desafio é criar alternativas para entreter a
criança, para que ela não fique apenas diante de uma televisão. Se a criança
fica exposta apenas a um tipo de desenho, ela perde a possibilidade de conhecer
outros modelos de interação. Quando a tv é usada como babá eletrônica, a
criança fica mais vulnerável às influências negativas e alienantes desta mídia.
3 - Pais podem brincar de lutinhas com os filhos? Isso é só uma
brincadeira ou pode gerar consequências? Se sim, quais são? Isso não pode fazer
com que o filho pense que pode bater nos pais?
A relação da criança com a violência vai depender muito do tipo de
interação que os pais desenvolvem com seus filhos.
O que pode fazer com que o filho pense que pode bater nos pais não é a
brincadeira, mas a interação mais ampla, e a maneira como estes pais impõem a
sua autoridade. Se são pais que batem na criança, eles estão ensinando que
bater é uma opção comportamental.
Pais que não batem e brincam de lutinha estão, além de brincando,
ensinando à criança que elas podem controlar e modular sua força.
Numa relação em que a autoridade parental é bem clara, a criança pode
distinguir entre o que é uma brincadeira e o que é uma briga de verdade.
4 – Uma criança que desde cedo tem contato com
lutinhas pode se tornar um adulto violento, briguento?
Sugiro uma diferenciação terminológica entre “lutinha lúdica” (quando
pais e filhos brincam com forças moduladas)
e “lutinha violenta”, (em que não há modulação de intensidade, deixando
de ser uma brincadeira). As lutinhas a que me refiro aqui são obviamente as
lúdicas.
Se uma criança desde cedo tem contato com lutinhas, mas não vive nenhum
tipo de violência ou punição física, ela terá mais probabilidade de não se
envolver com brigas e violência, porque o aprendizado lúdico das lutinhas a
ensinaram que violência não combina com o prazer que a brincadeira lhe
proporcionava.
Por outro lado, crianças que, mesmo sem ter contatos com lutinhas, vivenciam tipos de violências na relação com
seus pais, estas terão mais possibilidades concretas de se tornarem adultos
briguentos.
É provável inclusive que os pais severos e violentos não saibam brincar
de lutinha com seus filhos, pois nem eles mesmos saberiam distinguir a luta
lúdica da briga pra valer.
Em resumo, minha tese é de que se há alguma relação entre a lutinha
lúdica e a violência, ela é inversamente proporcional.
5 – Dar brinquedos em formatos de armas e espadas deve ser evitado?
Acho que não deve ser estimulado. É diferente de proibir.
Armas e espadas fazem parte do imaginário das crianças. Se ela não tem
uma espada, ela vai transformar qualquer objeto numa espada. É uma fase pela
qual ela passará. Às vezes a proibição total apenas aguça mais ainda a
curiosidade e a vontade de ter.
Eu prefiro pensar em algumas estratégias, tais como explicar pra criança
que armas e espadas não são brinquedos legais porque são instrumentos que as
pessoas usam pra fazer mal aos outros ou aos animais.
Como no caso da televisão, encontrar alternativas e estimular as
crianças em direção a elas pode ser uma boa estratégia também.
6- Qual a postura mais adequada para um pai quando
seu filho começa a se interessar por lutinhas?
Brincar de lutinha com ele e ir mostrando aos poucos que há muitas
outras maneiras de brincar.
Houve um período do meu filho, nas faixa dos 3 anos, que quando eu
chegava em casa ele já estava com um “tatame de edredom” me esperando pra
brincar. Detalhe: aqui em casa não assistimos lutas de MMA ou coisas do gênero.
Ao invés de me negar a brincar, entrava no tatame e lá íamos nós para alguns "rounds. Aos poucos, fui mostrando pra ele como fazer pra brincadeira não se
transformar em briga, como fazer pra não machucar o outro e não ser machucado,
como regular a força para não exagerar, como atender imediatamente o pedido do
outro quando ele pedir para parar, enfim, estas regrinhas básicas das lutinhas,
que aliás são bem contrárias às condições de uma briga de verdade.
Em pouco tempo a brincadeira foi sendo substituída por futebol,
detetive, cabaninhas secretas e outras atividades.
7 – Nas escolas, é muito comum as crianças se agredirem. Qual atitude os
pais e professores devem tomar nessas situações?
Investigar o que está levando aquelas crianças a comportamentos
agressivos entre elas. Talvez estejam ansiosas por alguma situação em sua vida,
talvez estejam “acostumadas” a este tipo de interação em outros contextos em
que vivem, talvez recebam palmadas em casa e estão aprendendo que o caminho
para impor sua vontade e sua autoridade é batendo no outro. Talvez estejam se
defendendo de algum tipo de agressão (física ou psicológica) vinda de outra
criança.
O caminho para a compreensão passa pelo diálogo e muita conversa entre
os pais e os profissionais envolvidos na vida escolar.
Vale a pena lembrar o que já se sabe: os modelos parentais são
fundamentais para a criança. Daí podemos nos perguntar:
1. Qual
é o lugar do televisor na vida da criança? Qual é o lugar do televisor na vida
dos pais?
2. Como
a criança lida com a adversidade e frustração? Como os pais lidam com a
adversidade e frustração?
3. Há
no comportamento da criança algum tipo de violência presente? Há na relação
pais/filhos algum tipo de violência presente?