Algumas idéias para tentar entender o que leva um adulto a considerar normal o uso da punição física infantil:
Naturalização cultural
Uma
naturalização cultural de dimensão transgeracional. Quem apanhou tende a
reproduzir o “sistema educacional” que recebeu, sem perceber os efeitos nocivos
desta reprodução. Para muitos desses pais que apanharam na infância, pensar na
possibilidade de educar os filhos de maneira diferente (e até melhor) pode soar
como um desrespeito ou como uma deslealdade aos próprios pais.
Deste contexto,
surge um conhecido discurso vindo das pessoas que batem nos filhos: agradecem
pelas palmadas que levaram de seus pais, atribuindo a elas a responsabilidade
por serem hoje “pessoas de bem”.
Para entender melhor este discurso, vale citar
o conceito de “lealdades invisíveis”, desenvolvido pelo psiquiatra húngaro Ivan
Borzomenyi Nagy. Estas lealdades são vistas como forças secundárias que regulam
nossos comportamentos e nossos pensamentos, como se fossem compromissos
invisíveis internalizados a partir da fantasia de que agir ou pensar diferente
poderia colocar em risco a manutenção da relação ou da imagem de seus pais ou
cuidadores.
Assim, é tão importante, para muitas destas pessoas, que as
palmadas sejam consideradas como “boas lembranças” e até mesmo repetidas em
seus próprios filhos. Propor um caminho de educação que saia deste padrão é
sentido como uma ameaça ao status quo do legado familiar.
Criança só entende apanhando
A noção
equivocada de que criança não tem capacidade plena de compreensão, fruto também
de uma cultura que não valoriza a Infância. Esta noção leva à ideia de que para
aprender, a criança precisa apanhar, pois ela só entende a “língua da palmada”.
Assim, temos hoje uma sociedade que já conseguiu proibir os escravos de
apanhar, já criou leis para defender as mulheres, já não bate mais nos seus
"loucos", já criou instituições de defesas dos índios, já considera
crime a tortura de prisioneiros, já luta contra o mau trato aos animais, mas
ainda considera normal e socialmente aceitável bater numa criança.
Mostrar autoridade
Outra
ideia que contribui para o uso da violência: os pais precisam dar uma palmada
na criança para mostrar a sua posição de autoridade na família. Pois eu sugiro
um raciocínio diferente: a palmada, ao contrário de afirmação de autoridade, é
consequência da sua ausência, é o sinal de que o pai não sabe mais o que fazer,
perdeu a capacidade de raciocinar e de estabelecer-se como autoridade na vida
do seu filho.
Quando um cuidador perde a autoridade, fica mais vulnerável a
atitudes de descontrole e impaciência, mais próximo de “perder as estribeiras”.
É claro que toda criança vai confrontar seus pais, vai desobedecer, vai fazer
birras. A diferença está na maneira como os pais vão responder a este
confronto. Se respondem com tapas ou palmadas, perdem a oportunidade de mostrar
quem é o adulto da situação.
Se os
pais querem que os filhos confiem em sua autoridade, precisam posicionar-se
como adultos que buscam enfrentar adversidades, provocações e irritações com
auto-controle e maturidade. Isto servirá de exemplo para a criança, e será um
modelo emocional muito mais eficaz que palmadas, surras ou gritarias.
Bater para evitar problemas futuros
A ideia de que criança que não apanha vai apresentar problemas mais tarde também influencia muitos pais e educadores. Porém, inúmeras pesquisas já comprovaram que crianças que
costumam ser “corrigidas” ou “ensinadas” à base de força bruta estão mais
vulneráveis a adotar comportamentos transgressores e agressivos do que outras
que são criadas num cultura de não agressividade.
Aqui entra mais um discurso
popular que precisa ser questionado: “bato no meu filho para ele não apanhar da
polícia no futuro”. Costumo responder a esta fala com a ideia de que quanto
mais você bate no seu filho, mais você o aproxima de apanhar da polícia no
futuro.
Discursos estereotipados
Algumas
crenças enraizadas no senso comum também cooperam para o uso da violência:
“Bato para o bem do meu filho, porque o amo e quero o melhor para ele”. “Bato
porque a criança precisa ser corrigida para não sofrer mais tarde”. “Bato para
ensinar o que é certo e o que é errado”. “Bato para ser obedecido”.
São discursos prontos que vão sendo incorporados pela sociedade sem que hajam reflexões críticas que questionem sua eficácia. Tudo que se
deseja nestas falas – demonstrar amor, corrigir, ensinar - pode ser alcançado
sem o uso da violência física.
Cultura religiosa
É muito forte a presença de idéias religiosas que reforçam o uso da palmada, especialmente através de uma interpretação literal e descontextualizada de alguns textos bíblicos que falam de disciplina e uso da "vara". Aqui é possível ler um pouco mais sobre isto: Os cristãos e a lei contra a punição física
Bater para impor limites
Por último, outro pensamento que influencia o
uso da força está baseado na confusão entre “educação sem violência” com
“educação sem limites”. Pais ficam temerosos ao pensar que se não baterem nas
crianças, elas ficarão sem limites e desobedientes. Mas há muitas formas de impor limites sem que se faça uso de qualquer punição física. Negar-se a usar a política da palmada não é negar-se a educar, a
disciplinar ou a impor limites tão necessários na formação da criança. É, ao
contrário, a tentativa de constituir uma relação familiar que seja diferente do
modo vigente em nosso mundo já tão repleto de maus tratos, opressão e
injustiça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário